Uma análise da obra Nascido para matar do gênio do cinema Stanley Kubrick
Após passar pelos gêneros épico, terror, ficção, humor negro, drama sociológico, entre outros, Stanley Kubrick, um dos cineastas mais versáteis de todos os tempos, decidiu, nesse filme, mostrar a guerra através de suas precisas lentes. Optando por analisar a figura humana, em vez da história por trás dos conflitos, Kubrick mostrou todo o drama que envolve uma guerra do ponto de vista dos próprios soldados. O filme é basicamente dividido em duas partes. Na primeira, a desestruturação emocional dos soldados é transmitida de forma vívida e irônica, onde, através de absurdos, nos é mostrado a quebra dos valores e princípios humanos durante o treinamento pré-guerra dos soldados. Na segunda parte, ambientada na guerra do Vietnã, a história é contada principalmente através dos olhos de um personagem – o soldado Joker - com atos e pensamentos que nos levam a crer que ele é a personificação da contradição existente no conceito de guerra.
Um dos fatores que me chamou a atenção, principalmente na primeira parte do filme, é o tipo de técnica utilizada para a gravação das cenas. O filme é repleto de tomadas completamente mecânicas como se quisesse mostrar o quão metódico pode ser o exército. Característica essa que, por meio de regras rígidas e repetições, levam os soldados à submissão. Já no começo do filme, onde o Sargento Hartman faz seu discurso aos calouros no treinamento, a câmera de Kubrick se mexe suavemente desenhando uma elipse no chão, girando de forma ininterrupta durante toda a fala do Sargento. Observamos também esse metodismo no estilo de gravação nos diversos momentos em que é usado o pullback (câmera em close up mudando, suavemente ou não, para planos mais abertos), mostrando primeiramente (em close up) a imagem dos rostos dos soldados e suas reações a alguma coisa e então, gradativamente, nos é mostrado o motivo daquelas reações, conforme a câmera vai recuando para o plano aberto. São apenas dois exemplos de como um estilo mais “mecânico” de gravar as cenas pode nos dar a sensação do metodismo usualmente adotado para treinamentos militares.
A seguir, tentarei analisar de forma mais profunda esses dois segmentos do filme, fazendo uso de frases e descrevendo cenas do próprio filme.
Atenção: A partir de aqui, o texto contém detalhes relevantes sobre o desenvolvimento do filme, os famosos spoilers, não sendo assim
aconselhável para aqueles que ainda não viram o filme.
O treinamento
- Eu sou o sargento de artilharia Hartman, seu instrutor. A partir de agora, só falarão quando forem chamados. E a primeira e última palavra que sairá de suas bocas imundas será “senhor”. Vocês me entenderam, seus vermes?
- Senhor, sim senhor.
- Porra nenhuma, não ouço vocês. Parecem mulherzinhas.
- Senhor, sim senhor!
- Se as senhoritas saírem da minha ilha, se sobreviverem ao treinamento, vocês serão armas. Serão ministros da morte rezando por guerra. Mas, até esse dia chegar, vocês são vômitos! Vocês são as formas de vida mais medíocres da terra. Nem sequer são porras de seres humanos! Não passam de pedaços desorganizados de merda anfíbia. Por ser severo, vocês não gostarão de mim. Mas quanto mais vocês me odiarem, mais aprenderão. Sou severo, mas justo. Não há descriminação racial aqui. Não desprezo judeus, crioulos, carcamanos ou cucarachas. Aqui vocês são todos igualmente inúteis. E tenho ordens de dispensar aqueles que não merecem estar em minha amada unidade.
É com essas palavras, saídas da boca do Sargento Hartman, que se inicia o pesadelo na vida dos soldados convocados pra o treinamento. Nesta cena inicial do filme e na maioria das cenas vindouras ainda contidas nessa primeira parte, do treinamento, é mostrada de forma clara e exagerada a desconstrução emocional dos aspirantes a combatentes. Com sua rigidez e agressividade, o sargento trata de desumanizar aqueles que estão ao seu serviço com o intuito de transformá-los em maquinas de matar, máquinas que eliminam os inimigos, independentemente se isso, o ato de matar, ferir, faz parte dos princípios daquele que futuramente estará nos campos de batalha.
Apesar de alguns não gostarem do sargento Hartman, eu tenho uma visão diferente sobre ele. Acho que ele acaba sendo vítima de um sistema, ele está ali para enviar pessoas pra guerra, pra matar ou morrer, se eles tiverem fraquezas elas devem ser extintas no treinamento. Visto isso, maldade seria se ele mandasse fracos pra guerra, para serem mortos ou terem poucas chances de sobrevivência. Foi o que disse, acredito que ele seja mais vítima do sistema, de toda essa sujeira política que existe, na posição em que ele se encontrava, fazia o melhor que podia, ou seja, que o menor número de americanos possível morresse naquela guerra.
Talvez nessa primeira parte, o personagem principal seja o soldado Pyle. Pyle é alguém que definitivamente não deveria estar lá. Nitidamente obeso e totalmente aquém dos ideais militares, seu sofrimento é narrado de maneira ímpar, onde Kubrick, gradativamente, mostra como Pyle passa através do sofrimento, da dor, humilhação e chega à loucura. No fim deste seguimento temos as primeiras “baixas de guerra”, antes mesmo de a própria guerra começar para aqueles soldados.
Reza do rifle
“Este é meu fuzil. Há muitos como ele, mas esse é meu. Meu fuzil é meu melhor amigo. É minha vida. Devo dominá-lo como domino minha vida. Sem mim meu fuzil é inútil. Sem meu fuzil, eu sou inútil. Devo usar meu fuzil com precisão. Devo atirar melhor que o inimigo que está tentando me matar. Devo atirar nele antes dele atirar
O campo de batalha
Na segunda parte do filme, mostra-se a projeção desse treinamento na guerra
O ápice da contradição desse personagem é o momento de sua discussão com o sargento em batalha sobre o broche da paz e a frase em seu capacete que dizia "nascido para matar", que ele explica como sendo a dualidade do homem*, que todos têm sua parte boa e sua parte ruim.
E, como prova final da maestria do Kubrick, acho que poucos diretores teriam capacidade de gravar tão bem a cena do sniper (atirador de elite). Mostrou-se a visão de ambos os lados, as mudanças de plano aberto pra close up simulando a mira da sniper eram ótimas, nos dava uma total sensação de incapacidade, de não saber como reagir àquela situação, um oponente que não se pode ver. Concluindo, um filme sobre a brutalidade das guerras e suas conseqüências aos homens que as lutam, muitas vezes, sem desejá-las.
* Essa teoria pode ser vista nesse artigo sobre psiquiatria: A Questão do Mal: uma Abordagem Psicológica Junguiana no link: http://www.rubedo.psc.br/artigosb/quesmal.htm
2 comentários:
Não tinha comentado ainda. Os artigos que li no blogger Cinemmus, são tão interessantes, que acompanho os artigos, mas não poderia omitir-me acerca de Kubrick. Sei que o autor tem muito mais pra expressar do que publicou, e peço que continue, por favor.
Obrigado pelo apoio ao blog Gilberto!
Infelizmente, isso foi realmente tudo que conseguir tirar de mim sobre o filme. Careço de conhecimento técnico para fazer uma descrição mais qulitativa e as idéias gerais que tive do filme as expressei todas.
No entanto, sinto-me extremamente tentado a fazer um explicação geral sobre todo o enredo de "2001 , uma odisséia no espaço" (também do Kubrick) mas falta-me incentivo, pois seria uma empreitada e tanto. Porém muito das pessoas que assistem o filme não conseguem entende-lo, as vezes, nem superficialmente sem umas dicas aqui e ali. Tentar esclarecer isso seria além de algo importante, um prazer. Quem sabe...
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