domingo, 28 de outubro de 2007

“Quem são os fascistas do cinema?” por Bráulio Mantovani

Colocarei aqui um texto de Bráulio Mantovani (talvez, o melhor roteirista do Brasil), responsável pelo roteiro de Cidade de Deus e, mais recentemente, Tropa de Elite. Excelente texto que nos dá uma idéia um pouco maior das características do ofício de roteirista e das responsabilidades que escrever um roteiro de cinema contém. Esse artigo foi retirado do blog dos Autores de cinema, que estreou recentemente e foi divulgado aqui no blog, vale a pena conferir o site e o blog que contém muitas informações sobre a profissão e tem como objetivo ser um espaço divulgador para aqueles que desejam saber um pouco mais do maravilhoso trabalho desses profissionais ou até mesmo aprender com os que lá se encontram, ou seja, os melhores. Eis o texto:



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Quando Cidade de Deus estreou nos cinemas, alguns críticos, acadêmicos e também espectadores atacaram o filme com virulência. Lembro-me de ter lido sobre o suposto “darwinismo social” do filme. Houve quem qualificasse o roteiro de “subtarantino”. Entrou em moda um slogan acadêmico muito pejorativo, de cujo enunciado não quero me lembrar, como diria Cervantes.

Tropa de Elite ainda nem foi lançado e nós, autores do filme, estamos sendo chamados fascistas. Há gente que vai mais longe, associando a suástica ao filme. Por quê? Porque a “mensagem” do filme seria a seguinte: os culpados pela situação da segurança pública no Rio de Janeiro são os jovens de classe média e alta que consomem maconha. E por causa do filme, vão ser transformados em bodes-expiatórios, como aconteceu com os judeus durante o terror nazista. E os culpados disso são os autores do filme.

Eu já esperava que a polícia (ou parte dela) tentasse impedir a exibição do filme, como de fato tentou. Mas eu nunca imaginei que alguém pudesse pensar que o Tropa de Elite tivesse o poder de desencadear uma cruzada contra os jovens universitários que usam drogas. Mesmo porque a droga faz parte da história, mas não é o tema do filme. O produto ilegal poderia ser CDs ou DVDs piratas, remédios falsificados, qualquer outra coisa. O tema do filme é a polícia militar carioca. E esse tema é tratado no filme pelo ponto de vista de um personagem que é policial. O narrador da história é violento. E age com violência e crueldade porque foi treinado para agir assim. O Capitão Nascimento acredita que o Rio é uma cidade em guerra. E não faz caso para a Convenção de Genebra. Há quem o considere um herói. Não é o meu caso. Um personagem que espanca um garoto para obter informações (o fogueteiro, que vigia o morro) não pode ser um herói, na minha opinião. Mas nem por isso é um monstro, desprovido de humanidade. E é por isso que as ações violentas do personagem são, para mim, tão assustadoras.

Muitos dos que consideram o filme fascista (e por extensão, seus autores e, em alguns casos, o público) fundamentam suas conclusões em certas reações por parte da platéia que esteve presente em uma única exibição oficial do filme. Pelo que me contaram, alguns espectadores aplaudiram a execução do personagem do traficante Baiano no fim da história. Talvez, outros tenham sentido vontade de aplaudir as execuções da estudante e do diretor da ONG levadas a cabo pelo próprio Baiano na favela, algumas cenas antes. Quem sabe, parte da platéia tenha comparado as duas execuções e pensado: “caramba, os traficantes e o Bope agem segundo uma mesma lógica perversa: quem quebra a lei (seja a lei do tráfico ou do estado) tem que ser torturado e executado”. Outras pessoas podem ter pensado muitas outras coisas. O público não é uma massa indistinta que atua em coro. Cada espectador reage ao que vê de acordo com o seu próprio sistema de valores. Há espectadores cuja reação diante de um filme é a de questionar suas opiniões e crenças. Outros buscam apenas encontrar elementos que sirvam para reafirmar o que já pensam. As reações do tal público não são unívocas. E os autores de qualquer obra não têm controle sobre elas.

O que está acontecendo com Tropa de Elite aconteceu também com o filme Baixio das Bestas. Soube por relatos de meus colegas da AC (Autores de Cinema) — a associação dos roteiristas brasileiros de longas-metragens — que no debate sobre o roteiro do filme, que ocorreu no festival de Brasília do ano passado, o roteirista Hilton Lacerda foi acusado de misógino e homofóbico. Quer dizer que porque Baixio das Bestas expõe a misoginia e a homofobia, com coragem, verdade e muito talento, os autores do filme (roteirista e diretor) são misóginos e homofóbicos?

Os que nos chamam fascistas devem pensar que um filme sobre a violência policial só pode ser feito sob o ponto de vista das vítimas dessa violência. Parecem raciocinar segundo uma regra que define que bandidos cruéis, policiais violentos, misóginos e homofóbicos têm que ser retratados como monstros e interpretados por atores sem carisma. As imagens da miséria brasileira só podem ser mostradas na tela como faziam os grandes mestres do cinema novo. Essa maneira de pensar me faz lembrar de uma reflexão de Roland Barthes sobre a língua, em sua famosa Aula: “a língua (…) não é nem reacionária, nem progressista; ela é simplesmente: fascista; pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer”. Felizmente, o cinema tem suas próprias e muitas gramáticas."


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