Depois de algum tempo sem escrever, volto para repensar, junto aos leitores do blog, uma incomparável modalidade de ficção: A Literatura.
Antes do desenvolvimento dos argumentos que permitem a classificação de O Primo Basílio como um romance realista, partindo da utilização do texto romântico Coração, Cabeça e Estômago, julgo altamente necessário um breve resumo de ambas as obras que são referência na Literatura Portuguesa.
O Primo Basílio
Em O Primo Basílio de Eça de Queirós, Luísa vive um casamento “morno” com seu marido, o engenheiro Jorge. Ela passa os dias dentro de casa e em constante tédio. Sem ter o que fazer, Luísa vive debruçada sobre os romances, pelos quais é grandemente influenciada. Sem ter relevantes alterações na rotina do seu dia-a-dia, ela recebe, vez ou outra, a visita de sua amiga Leopoldina.
No meio de um verão sufocante, durante o qual Jorge faz uma viagem de trabalho ao Alentejo, Luísa recebe a visita de um primo rico, seu ex-namorado Basílio, agora recém-chegado do Brasil. Tornam-se amantes em pouquíssimo tempo, encontrando-se freqüentemente em um quarto alugado especialmente para esse objetivo. A criada Juliana descobre o relacionamento e começa a interceptar a correspondência da patroa, escondendo as cartas comprometedoras de Luísa a Basílio. A empregada pede à sua patroa uma quantia exorbitante, garantindo que se Luísa der o que lhe pede, não contará nada ao seu patrão Jorge. Luísa, desesperada, propõe a Basílio que fujam. Este não aceita a proposta da amante e vai sozinho para Paris.
Sob a pressão de Juliana, Luísa torna-se, pouco a pouco, uma verdadeira presa nas mãos da criada e é obrigada a fazer os serviços domésticos; sua situação acaba ficando insustentável. Jorge retorna do Alentejo e estranha bastante a situação da esposa. Luísa, desesperada, procura o amigo Sebastião e pede-lhe ajuda. Sebastião obriga Juliana a entregar as cartas comprometedoras. Depois da entrega, a criada que já sofria de problemas do coração, morre. Luísa fica doente em seguida.
Um dia ela recebe uma carta de Basílio, que Jorge lê e toma conhecimento das relações entre a esposa e o primo. Quase convalescente, a moça tem uma recaída, delirando e entrando em estado irrecuperável. Luísa acaba falecendo.
Coração, Cabeça e Estômago
Coração, Cabeça e Estômago de Camilo Castelo Branco, se trata de uma biografia do personagem Silvestre da Silva. A obra fica como herança para um amigo e o seu conteúdo refere-se ao “saber viver”; “aproveitar a vida para dela conquistar o máximo”.
A história se divide em três partes: na primeira, intitulada “Coração”, marcadamente romântica, Silvestre é guiado pelo coração e ama sete mulheres. É ainda nessa parte que Silvestre fala sobre duas presenças femininas marcantes em sua vida, que seriam “a mulher que o mundo respeita” e “a mulher que o mundo despreza”. Na segunda parte, sob o título de “Cabeça”, Silvestre resume suas idéias sobre o amor em sete princípios (máximas); torna-se jornalista. Escreve “páginas sérias de minha vida”, onde em um baile conhece as três herdeiras mais ricas da sociedade portuense. Nessa fase, Camilo C. Branco demonstra o realismo através da postura do personagem. Na terceira e última parte da história com o nome de “Estômago”, Silvestre narra como se casou com Tomásia. Silvestre não se perguntou se amava Tomásia ou não. Segundo ele, a comparar aos casais bíblicos, o casamento não se faz por amor – porque este é coisa do coração - que não tem mais importância nenhuma para ele. O autor vale-se de características naturalistas para construir/transformar os personagens e as suas posturas em relação aos acontecimentos.
Análises das Obras e Personagens
A obra de Eça de Queirós - O Primo Basílio - pode ser classificada como realista. De acordo com algumas das características deste estilo literário presente no romance, enfatiza-se a primeira: localização do texto em um ambiente de realidade social, pois os personagens são caracterizados e situados dentro de um contexto que leva em conta a realidade da sociedade burguesa de Lisboa da época. Além disso, há constantemente a apresentação física real dos personagens muito bem descrita. Observa-se isso através das passagens nas quais Jorge é apresentado, por exemplo:
“Era engenheiro de minas, no dia seguinte devia partir para Beja, para Évora, mais para o sul até São Domingos; (...)”. (p.7)
Ou ainda:
“(...)Fisicamente Jorge nunca se parecera com ela [sua mãe]. Fora sempre robusto, de hábitos viris. Tinha os dentes admiráveis de seu pai, os seus ombros forte”. (p.8) [grifos meus]
Já o texto de Camilo Castelo Branco – Coração, Cabeça e Estômago – pode ser classificado com romântico. Ao confrontar o romance de Eça de Queirós com o de Camilo C. Branco descobre-se que a maioria das citações sobre os personagens de Coração, Cabeça e Estômago é permeada de um idealismo muito intenso, marca que é típica do Romantismo. Nas palavras que se referem à Clotilde, Silvestre diz:
“Desci ao jardim, colhi duas rosas aljofradas das lágrimas da aurora, pedi licença para lhes oferecer, e disse: ‘Não as enxuguei, para não privar as florinhas das carícias de um anjo’ ”. (p.15)
Ou mesmo:
“- Chama-se Clotilde?
- Chama. Que nome!, que poesia!, que lirismo!, (...)”. (p.16)
Outra característica presente na obra realista/naturalista é observação do homem como um animal, que tem o seu comportamento ditado de acordo com a variação das circunstâncias do meio no qual está inserido (Determinismo). Além disso, pode-se observar que as reações dos personagens que variam conforme os acontecimentos em O Primo Basílio e em Coração, Cabeça e Estômago, são muito diferentes.
Há uma cena altamente dramática em O Primo Basílio que retrata certos tipos de reação quando Juliana e Luísa estão em confronto. Há uma grande tensão nessa parte da obra. Aqui, pode-se ver um episódio de caráter indubitavelmente realista, apesar de Luísa se deixar manipular e assumir um tipo de fraqueza pela qual se constata uma espécie de “superficialidade” na construção do personagem. Junto a isso, tem-se a ajuda de possíveis ilustrações, explícitas ou não, que Eça de Queirós constrói para uma melhor visualização do homem como animal:
“- Quanto você quer pelas cartas, sua ladra? – disse Luísa, erguendo-se direita, diante dela.
(...) – A senhora ou me dá seiscentos mil réis, ou eu não largo os papéis! (...)
- Seiscentos mil réis! Onde quer você que eu vá buscar seiscentos mil réis?
- Ao inferno! - gritou Juliana. – Ou me dá seiscentos mil réis, ou tão certo como eu estar aqui, o seu marido há de ler as cartas!
(...) Luísa, quebrada, sem força para responder, encolhia-se sob aquela cólera como um pássaro sob o chuveiro. Juliana ia-se exaltando com a mesma violência da sua voz”. (p.203; 204)
No trecho acima, enxerga-se uma Luísa verdadeiramente amuada como um frágil “pássaro sob o chuveiro” (imagem explícita) e uma Juliana crescendo em força como uma “loba” (imagem implícita), buscando tragar a patroa.
Diferente do romance de Eça de Queirós, Camilo C. Branco constrói ao longo da história de Coração, Cabeça e Estômago personagens que reagem aos fatos como românticos ao extremo. Dentro da primeira parte do livro, quando Silvestre ainda é guiado pelo coração, ao descobrir que Clotilde seria casada, conta:
“(...) - O que?! – exclamei eu, varado de agulhas nos olhos e nos ouvidos”. (p.17)
Que declaração pode ser esta, senão, certamente, romântica? Ou ainda, quando Silvestre e seu amigo Cibrão Taveira conversavam sobre Mademoiselle Elisa de la Sallete, diante de mais uma decepção amorosa, a exclamação é bem idealizada, como se espera de um romance romântico:
“(...) Cibrão, sem escarnecer a minha dor, respondeu com ar sisudo: ‘ - (...) Eu sei-o da outra, que ela tem na conta de amiga íntima. Ambas são da mesma farinha. Nenhuma delas serve para poetas, que andam no encalço de anjos. (...) Se queres mulheres para romances e prosas, pede-se à tua imaginação e deixa o mundo real como ele está, que não pode ser melhor’ ”. (p.23)
Na passagem citada acima, constata-se que a produção é romântica, entre outros fatores, devido à idealização da mulher por parte dos personagens; à decepção de um amor nunca alcançado; e ao pessimismo característico dos românticos.
Na seguinte passagem, é possível o reconhecimento de características românticas, com um toque de comicidade:
“A minha cara ajeitava-se pouco à expressão dum vivo tormento de alma, em virtude de ser uma cara sadia, avermelhada e bem fornida de fibra musculosa. Era-me necessário remediar o infortúnio de ter saúde (...). Um médico da minha íntima amizade receitou-me uma essência roxa com a qual eu devia pintar o que vulgarmente se diz ‘olheira’ ”. (p.25)
Mais um aspecto a respeito de O Primo Basílio é a tão questionada personagem Luísa. Considerada um personagem de mente fraca, manipulável e sem força de vontade. A primeira impressão que temos é que Luísa não condiz com o Realismo, por ser um personagem essencialmente romântico. Ela lê romances, acredita no escapismo e idealiza tanto seu marido Jorge quanto seu amante Basílio. De acordo com uma crítica feita por Machado de Assis sobre o personagem:
“A Luísa é um caráter negativo, e no meio da ação ideada pelo autor, é antes um títere do que uma pessoa moral. Repito, é um títere; não quero dizer que não tenha nervos e músculos; não tem mesmo outra coisa; não lhe peçam paixões nem remorsos; menos ainda consciência”. (Assis: 170;171)
Ele afirma claramente que a Luísa é praticamente uma marionete nas mãos de qualquer personagem da história. E mais:
“Luísa resvala no lodo, sem vontade, sem repulsa, sem consciência; Basílio não faz mais do que empuxá-la, como matéria inerte, que é. Uma vez rolada ao erro, como nenhuma flama espiritual a alenta, não acha ali a saciedade das grandes paixões criminosas: rebolca-se simplesmente. Assim, essa ligação de algumas semanas, que é o fato inicial e essencial da ação, não passa de um incidente erótico, sem relevo, repugnante, vulgar. Que tem o leitor do livro com essas duas criaturas sem ocupação nem sentimentos? Positivamente nada”. (Assis: 170;171)
Claro que Machado exagerou principalmente a respeito do envolvimento do leitor na história. O que poderia ser mais realista do que um episódio doméstico? O fato é que Queirós desde o início quis criar um personagem raso. Nunca teve intenções de torná-la uma heroína cativante como a Maria Eduarda de Os Maias (outra obra do autor português) nem tão pouco como “a provinciana singela e boa” Eugênia do romancista francês Honoré de Balzac. Ela certamente lembra a Emma Bovary, personagem de Flaubert: frágil, sonhadora, romântica.
Breves Conclusões sobre os Romances:
O Primo Basílio de Eça de Queirós é composto por marcas realistas no que tangem, principalmente, a análises psicológicas dos personagens e as suas reações diante das circunstâncias. Neste romance realista há, ainda, o objetivismo (que vai contra o subjetivismo romântico, por exemplo), o materialismo (que leva à negação do sentimentalismo e do caráter metafísico), o determinismo (que defende que o homem é produto do meio no qual está inserido), o tom moralista de Eça de Queirós, que como crítico da sociedade lisboeta daquela época, viu a necessidade de punir a personagem principal, etc.
Contudo, não se pode negar que a obra Coração, Cabeça e Estômago de Camilo Castelo Branco apresenta suas características realistas na fase sob o título de “Cabeça” e naturalista na parte nomeada “Estômago”. Entretanto, a obra de Castelo Branco demonstra uma influência predominantemente romântica, especialmente na primeira parte do romance – “Coração” – onde há a presença manifesta de marcas claramente românticas.
PARA QUEM GOSTA DE CINEMA:
Eu não sei bem se recomendo ou não que assistam ao filme brasileiro que estreou no ano passado "O Primo Basílio"... Suspeita p/ falar, o filme possui adaptações que prejudicam o desenrolar da história das quais não gostei. A minisérie produzida a partir da mesma obra é, realmente, muito mais fiel se comparada ao filme. Além disso, a minisérie nos presenteia com a belíssima atuação de Marília Pêra no papel da empregada Juliana e Tony Ramos como o personagem Jorge. Essa vale à pena!