sábado, 8 de março de 2008

O olhar de Kubrick sobre a evolução humana - Parte I

Um tratado explicativo da obra “2001 – Uma odisséia no espaço”, o mais importante filme de ficção científica da história do cinema.

Intentei criar uma experiência visual porque
estas ultrapassam o alcance das verbais,
normalmente relegadas ao ouvido, para
penetrar diretamente no subconsciente
com um conteúdo emocional e filosófico...
Queria que o filme fosse uma experiência
muito subjetiva, que chegasse ao espectador
em um nível interno de consciência, como lhe
chega a música... Pode especular livremente
sobre o significado filosófico e alegórico do filme.

Stanley Kubrick


Após escrever um pouco sobre o filme Nascido par matar no artigo “O olhar de Kubrick sobre guerra”, decidi seguir a mesma idéia e tentar explicar, desta vez de forma mais abrangente e profunda, este que é um dos filmes mais incompreendidos do Kubrick. Após muitas tentativas (nem todas bem sucedidas) de mostrar para meus amigos o porquê de eu achar esse filme genial, finalmente tentarei expor tudo que entendi durante o filme e suas sutilezas, tanto sobre o enredo em si quanto nas questões técnicas. Espero que consiga atingir pelo menos um pouco do meu objetivo e que esse texto sirva para aumentar o número de admiradores desse filme e do cinema de Stanley Kubrick.

Em princípio, dividirei esse artigo em três postagens para não tornar a leitura cansativa. Essa divisão coincidirá com a divisão em capítulos existente no filme. São elas: A aurora do homem, a missão para Júpiter e além do infinito. Durante essas partes e no fim de todas elas, farei breves comentários acerca da importância da trilha sonora nesse filme, a precisão para com a física, planos flutuantes e seu efeito visual, previsões tecnológicas entre outros detalhes extras. Dito essas coisas, vamos ao que realmente interessa: A nossa odisséia pelo mundo de Stanley Kubrick!


A aurora do homem

O filme começa com uma seqüência belíssima de paisagens de um planeta terra que não conhecemos. Não conhecemos porquê ainda não estávamos lá. A quase inexistência de vida e as paisagens naturais ainda inalteradas pelo homem tratam de nos situar no tempo: As imagens que vemos são de quatro milhões de anos atrás. As cores inconfundíveis do espalhamento dos raios solares pela atmosfera terrestre tratam de anunciar o surgimento de um novo dia e, implicitamente, o surgimento de uma nova era que virá.

Os primeiros seres vivos nos são mostrados. Um pequeno grupo de antropóides defende as poucas plantas que possui para sua alimentação do interesse de outros animais. Em seguida, o ataque de uma onça a um membro do grupo mostra a vulnerabilidade daqueles seres. A tela escurece. Vemos agora um pequeno grupo de antropóides bebendo água em uma pequena poça enquanto um outro grupo de antropóides se aproxima com o mesmo interesse. Começa então uma seqüência de gritos e movimentos desprovidos de regularidade por ambos os grupos de animais com o intuito de espantar o outro bando para então ter o controle da água.

A tela escurece e nos vemos novamente imerso as lindas paisagens pré-históricas. A onça por cima do cadáver de uma zebra mostra o quanto suas garras e prezas são decisivas no momento de conseguir alimento e, conseqüentemente, de sobreviver.

Um grupo de macacos dorme. Ao acordar, um deles se defronta com algo que o assusta, porém, nós espectadores, ainda não sabemos o que é. O sentimento de medo e curiosidade cresce em suas expressões e gestos assim como no som emitido por ele o que faz despertar para o acontecimento os outros membros do grupo. Agora em um plano aberto vemos o motivo de suas aflições: Um imenso bloco negro e comprido perfeitamente lapidado com precisão tal que nos faz acreditar que seja algo impossível de ser composto naturalmente. Os seres primitivos afastam-se e formam um circulo em volta do monólito negro.

“Com o aparecimento do artefato, surge a música eclesiástica de Ligeti. A voz do vento se confunde com Atmosferas. Música inane, sem objeto, sem tonalidade, sem ritmo, amorfa. A aproximação dos homens-macaco é um momento primitivo, poético, sem palavras. Ligeti soa como colagem frenética de todas as religiões do mundo. A música se associa ao estranho objeto, como saindo do seu interior.”

Rosinha Spiewak, doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP

O monolito nesse momento representa o que vai ser uma constante por todo o filme, o medo do desconhecido. Gradativamente os antropóides se aproximam e pouco a pouco começam a tocar no monólito, transformando o medo anterior em um bem-estar para com a sua presença. No céu, vemos que naquele momento o sol está alinhado com a extensão negra e comprida do monólito fincado na terra.

Costumo dizer que quem não entende a Aurora do homem pode parar de ver o filme quando esta primeira parte chegar ao seu fim. O motivo para isso é que o acontecimento supracitado é essencial para o entendimento de todo o resto do filme, é uma “colher de chá” dada por Kubrick. Na verdade, nos parágrafos abaixo veremos quais foram as conseqüências do contato entre os antropóides e o monólito negro, influência essa que é muito mais simples de entender nessa primeira parte do filme, único e exclusivamente por analise comportamental dos seres.


Voltemos então aos acontecimentos. Mais uma vez, nós somos mergulhados no silêncio das paisagens vazias. Vemos muitos antropóides, mas um deles merece uma atenção especial. Começa agora minha cena favorita do filme, espero que consiga passar o peso que ela tem. Num plano médio, vemos um antropóide perto de uma ossada de um animal. Notamos que ele olha para os ossos de forma diferente, com uma certa inquietude enquanto ouvimos os primeiros acordes de “Assim falou Zarathustra” de Richard Strauss, música essa que será a marca registrada durante o filme, como sendo a sonorização da palavra “evolução”. Voltando ao antropóide, nos é mostrado rapidamente o quadro supracitado do sol alinhado com o monolito negro, voltando em seguida para o antropóide (mais uma “colher de chá” de Kubrick que, através da montagem, nos mostra a relação direta entre aquele acontecimento e sua conseqüência principal: A evolução daqueles que o tocaram). O antropóide olha para os ossos de forma diferente, parece entender algo novo, descobrir algo. Gradativamente, com o osso em mãos, começa a balançá-lo de um lado para o outro, variando a direção e a força.

A música de Strauss cresce com força. Os ossos espalhados no chão começam a se quebrar devido a colisão com o osso empunhado pelo antropóide. Percebam o peso desse acontecimento! É a primeira vez na história dos seres vivos que um osso é usado como ferramenta, é a primeira vez que algo é usado como ferramenta. No ápice da música de Strauss vemos uma montagem que nos elucida esse acontecimento, vemos o crânio no chão sendo esmagado pelo antropóide seguido de um animal vivo caindo morto como se tivesse sido atingido também pelo osso: agora a caça é possível. Todo o resto do filme trata sobre isso, a influência que o monólito teve na evolução da raça humana e como mudou definitivamente, através da inclusão da capacidade de pensar em alguns seres vivos, a seleção natural no nosso planeta (antes já tínhamos visto que as onças eram muito mais aptas à caça e, portanto, a sobreviver, que os antropóides).


A evolução só começou. Em seguida, podemos presenciar já o domínio da caça através da utilização de ossos como ferramenta. Vemos vários antropóides, todos eles comendo carne e segurando um osso, instrumento esse responsável pela obtenção mais fácil de alimento.


Novamente voltamos à poça de água e conseqüentemente a disputa pela mesma entre os grupos de antropóides, mas dessa vez as coisas serão diferente. Nitidamente mais eretos que os demais, os membros do grupo que presenciaram o monólito e que agora já consegue caçar e se defender melhor, vence fácil a disputa. Com movimentos menos despropositados, se aproxima do outro grupo e mata um antropóide que não teve contato com o monólito, que não evoluiu. A seleção natural mudou de rumo para sempre. Num momento antológico do cinema, um antropóide (eles ainda podem ser chamados assim?) joga para o alto o osso que utilizou para matar e, dessa forma, manter o domínio do lago. O osso sobe alto e desce em sentido horário, ocorrendo então o maior corte temporal cinematográfico já concebido: Estamos agora no espaço sideral.

Termina aqui a primeira e belíssima parte do filme. Essa primeira parte é de vital importância para todo o desenvolvimento do filme e nos mostra com antecedência como será a linguagem utilizada para explicar os eventos. Nas partes posteriores do filme, seremos diretamente ligados aos acontecimentos e à linguagem (como a música de Strauss no momento da evolução) que presenciamos de forma mais acessível nesse inicio.

Nas postagens vindouras, tratarei dos outros segmentos do filme, talvez levemente menos explicados (se não, daria umas 20 páginas pelo menos) do que esse primeiro que considero importantíssimo para o entendimento do resto. Espero que eu tenha sido claro em minhas explicações e que tenha mostrado uma coisa ou outra que não havia sido previamente notado por alguns, pois minha intenção aqui é simplesmente tentar enriquecer o entendimento desse filme que tanto gosto. Até a próxima postagem, onde continuaremos a nossa odisséia.

4 comentários:

André Correia disse...

SIMPLESMENTE FANTÁTICO!
te amo sem mesmo te conhecer.

André Correia disse...

Parabens! Foi o texto mais bem escrito que li até hoje sobre 2001, simplesmente sublime.

André Correia disse...

Vamos à proxima postagem, espero com ansiosidade!

Anônimo disse...

gostei muito do post. espero ver o restante com ansiosidade!